Sobre as eleições legislativas na França

Por Allan Kenji Seki, Psicólogo e Doutor em Educação (UFSC), Pesquisador na Universidade Paris 8, Direto da França, especial para o jornal Linha Viva

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Imagem: Yann Gall - https://www.instagram.com/ reel/C8_x40IqHcL/?utm_source=ig_web_copy_link&i gsh=MzRlODBiNWFlZA%3D%3D

No último domingo, 7 de julho, as eleições legislativas na França resultaram em uma grande vitória contra o Rassemblement National (RN), partido de extre ma-direita, e seus aliados. Com uma participação significativa de 67,5% dos elei tores, um nível não visto desde o final dos anos 1990, a esquerda emergiu com força, conquistando 198 assentos na Assembleia Nacional.

 O resultado põe uma vírgula em uma situação de instabilidade política que teve como um de seus principais atos, no dia 9 de junho, quando o Presidente da Re pública francesa, Emmanuel Macron, dissolveu a Assembleia Nacional (AN), após a derrota de seu partido para a extrema-direita nas eleições para o Parlamento Europeu (realizadas entre 6 e 9 de junho). A dissolução da AN, prerrogativa cons titucional do Presidente, resultou na convocação de eleições legislativas, cujo período de campanha foi de apenas três semanas.

Talvez Macron considerasse que a esquerda estava dividida e incapaz de forjar unidade e que, sendo o seu partido a única força alternativa ao avanço do RN, ele se beneficiaria da “política do medo”, capturando as forças sociais em sua campanha.

 Vale dizer que o governo de seu partido não tinha maioria e vinha impondo reformas e austeridade por meio de manobras legais, incluindo: reforma da pre vidência, saúde, seguro-desemprego e leis de imigração. Políticas estas que bus cavam mostrar aos capitais, que eles não precisavam do RN para implementar as políticas de austeridade e, aos trabalhadores franceses, que, apesar do esfacela mento de seus direitos, seu governo ainda seria mais “democrático” e “republica no” do que um possível governo de extrema-direita.

 Porém, menos de um dia após a dissolução, a esquerda demonstrou a capaci dade de forjar uma aliança em torno de um programa suficientemente claro e radi cal: nasceu assim o Novo Fronte Popular (NFP). A unidade em torno, não do terror diante da extrema-direita, mas de um programa simples: o NFP reconhece que existe uma série de crises que se conjugam no momento atual, e que não foram os trabalhadores aqueles que as produziram, portanto, é o capital que deve fazer os sacrifícios. Isto quer dizer, assim simplesmente, que no curto prazo deve-se ta xar as grandes fortunas, aumentar o salário mínimo (mais do que criar programas sociais, repartir a riqueza), revogar a reforma da previdência e a lei de imigração.

 O programa é assim, claro e direto e, portanto, com difíceis possibilidades de alianças com a direita. Toda a campanha baseou-se em dizer: nós vamos ganhar para implementar este programa e não apenas “ganhar” para impedir o “RN” (e terminar por implementar sua política).

Foi com esta disposição que a esquerda jogou um papel decisivo. Isto porque as eleições na França ocorrem em dois turnos, separados por apenas uma semana. Cada circunscrição elege um deputado, mas concorrem no segundo turno todos os candidatos que obtiveram mais de 12,5% dos votos. Assim, o segundo turno é marcado, em geral, pela escolha entre três candidatos (triangular).

Após o primeiro turno, enquanto se noticiava em todo o mundo a suposta “vitória da extrema-direita”, a esquerda fez um movimento de brilho: decidiu unilateralmente e sem “acordo” político que todos os seus candidatos em terceiro lugar em disputas triangulares desistiriam imediatamente de suas candidaturas: “nenhum deputado a mais para o RN”.

 Essa postura foi imediatamente reconhecida pelo povo francês. O NFP assumiu a liderança intelectual e moral das eleições, isto obrigou a direita a ter que fazer o mesmo, sob o risco de ser ela a responsável pela eleição de deputados do RN. Assim, em grande parte das circunscrições a direita teve que desistir de candidaturas para permitir que o NFP derrotasse o RN, onde apenas ele poderia vencer.

 Esse ato de responsabilidade política marcou o ponto-chave da virada eleitoral e, o mais importante: sem rendição ao medo e, portanto, sem aliança com a direita.

 É interessante observar como, no Brasil, as análises da situação francesa muitas vezes refletem adaptações convenientes da conjuntura política daquele país para a nossa própria realidade, ao invés de uma leitura objetiva sobre a França e o desenvolvimento da sua luta de classes.

 Exemplo é que aqui primeiro, buscou-se usar o resultado do primeiro turno francês para enquadrar uma suposta “vitória massiva da extrema-direita” como o resultado direto da polarização política e usar a França como exemplo de um “espírito que ronda a política brasileira” e que não deixa espaço para críticas às forças hegemônicas da esquerda. No entanto, tendo em vista o resultado final das legislativas francesas e que isso caiu por terra, tenta-se mudar a “lição”, agora o que se quer imprimir é a tese de que apenas uma “frente ampla”, “republicana”, “democrática”, de “aliança da esquerda com o centro (leia-se, direita)”, teria vencido a extrema-direita na França. Nada mais falso.

 As eleições na França certamente oferecem valiosas lições para a nossa conjuntura política, mas estas lições precisam ser corretamente interpretadas diante do estágio da luta de classes do nosso país. Talvez isso comece por nos questionarmos sobre a envergadura moral e intelectual de nossas próprias esquerdas e qual o programa elas efetivamente portam para os trabalhadores mais sofridos desta terra, nos momentos mais decisivos.

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