Anatomia de um apagão: A crise da privatização dos serviços públicos

TRIBUNA LIVRE | Por Tamara Zambiasi, Doutoranda em Geografia na Universidade de Cambridge (Reino Unido). Mestre em Estudos Latino- Americanos pela Universidade de Cambridge (Reino Unido). UK Research Council ESRC-DTP Cambrige Scholar. Honorary Harding Distinguished Postgraduate Scholar. Bacharel e licenciada em História pela PUCRS (Brasil)

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São Paulo, a maior metrópole da América Latina, mergulhou novamente na escuridão em outubro, marcando o terceiro grande apagão em menos de um ano. Mais de 3 milhões de moradores ficaram sem energia, não por algu­mas horas, mas por dias consecutivos, eviden­ciando a fragilidade de um serviço essencial. No centro da crise, figura a Enel, multinacional italiana que, desde a aquisição da AES Eletro­paulo em 2018, é responsável pela distribuição de energia na capital paulista. A empresa tem sido alvo de severas críticas, com acusações de negligência e má gestão que ganham cada vez mais força entre a população e especialis­tas.

Em 1999, a Eletropaulo foi privatizada ape­nas 18 anos após sua fundação. Na época, o Governo do Estado de São Paulo justificou a venda pela situação financeira crítica da com­panhia, marcada por um elevado endividamen­to que impedia novos investimentos e compro­metia a qualidade do atendimento. O processo, marcado por controvérsias, foi viabilizado com recursos públicos através de financiamento do BNDES, e resultou na venda da estatal ao con­sórcio Lightgás, liderado pela empresa ameri­cana AES, pelo valor mínimo de R$ 1,7 bilhão estipulado no edital.

A venda, contudo, teve desdobramentos problemáticos: o consórcio não quitou integral­mente a dívida, que deveria ser paga em nove parcelas. Em 2004, o BNDES perdoou quase 200 milhões de dólares em juros acumulados em troca de uma promessa de pagamento da dívida principal, um acordo que levantou ainda mais dúvidas sobre o os rumos dessa privatiza­ção. O cenário subsequente incluiu o sucatea­mento da infraestrutura, a falta de investimen­tos estratégicos, o fechamento de agências e cortes profundos no quadro de funcionários, enquanto a dívida da companhia continuava a crescer, atingindo R$ 5,5 bilhões, dos quais R$ 1,2 bilhão eram devidos ao próprio BNDES.

Entre 1998 e 2001, a AES Eletropaulo des­tinou US$ 318 milhões em dividendos para o exterior, beneficiando seus acionistas estran­geiros, mesmo com a rede elétrica precisando urgentemente de modernização e manutenção. Esse fluxo de dividendos contrastava com a cri­se operacional local e expôs um dilema central da privatização: a prioridade aos acionistas in­ternacionais em detrimento dos investimentos necessários. Em 2001, a companhia reportou um lucro de US$ 273 milhões, mas, já no ano seguinte, apresentou um prejuízo de US$ 3,5 milhões, refletindo uma gestão financeira instá­vel e incapaz de gerar segurança institucional.

Esse histórico de gestão precária culminou, uma década depois, em uma explosão de insa­tisfação entre os consumidores. Em 2010, os efeitos da privatização ficaram evidentes nos dados: o Procon de São Paulo registrou um aumento significativo nas queixas contra a AES Eletropaulo, totalizando 3.715 atendimentos entre janeiro e agosto daquele ano. Esse nú­mero foi 28 vezes superior ao de reclamações contra a CPFL, segunda empresa mais mencio­nada, revelando uma discrepância alarmante e a gravidade dos problemas enfrentados pelos clientes da AES Eletropaulo. Com uma infraes­trutura cada vez mais sucateada, redução de funcionários e fechamento de agências, a AES Eletropaulo se transformou em um símbolo das falhas do modelo de privatização que, em vez de priorizar o interesse público e a qualidade do serviço, favoreceu a transferência de dividen­dos a acionistas internacionais, mesmo diante de uma crise operacional local.

Em 2018, diante de uma situação financei­ra precária e sob forte pressão pública, a AES decidiu vender sua participação na Eletropau­lo, justificando a decisão como parte de uma estratégia de reciclagem de capital e foco em operações mais lucrativas. Naquele ano, a ita­liana Enel, uma gigante do setor elétrico com controle majoritário do governo italiano, assu­miu a operação da Eletropaulo. Com uma pre­sença marcada no Brasil, incluindo concessões no Rio de Janeiro, Ceará e São Paulo, a Enel passou a atender mais de 18 milhões de pes­soas apenas na região metropolitana de São Paulo.

Na ocasião do fechamento do negócio, o presidente da Enel no Brasil anunciou um pla­no de investimento de mais de 900 milhões de dólares até 2021, com a promessa de rever­ter a precariedade do serviço, que, segundo a companhia, era consequência da falta de in­vestimentos adequados pela Eletropaulo. No entanto, ao longo desse período, a Enel inves­tiu aproximadamente 600 milhões de dólares, valor consideravelmente abaixo do prometido. Em contrapartida, a empresa dobrou seus lu­cros e reduziu seu quadro de colaboradores em 35%, levantando questionamentos sobre o compromisso com a qualidade do serviço e o impacto desse modelo de gestão no atendi­mento ao consumidor.

Desde que a Enel assumiu a Eletropaulo, as reclamações de consumidores não pararam de crescer. Apagões prolongados e dificuldades para obter atendimento eficiente intensificaram o volume de queixas registradas pelo Procon, expondo a discrepância entre as promessas de melhorias e a realidade enfrentada pela popu­lação. Esse quadro motivou a Assembleia Legislativa de São Paulo a instaurar, em 2023, uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar os constantes problemas de interrupção no fornecimento de energia, as falhas no atendimento ao consumidor e questionamentos sobre a política de cobrança, agravados durante e após a pandemia, período em que as reclamações dispararam.

O episódio crítico de 3 de novembro de 2023, que causou um apagão de grandes proporções, intensificou ainda mais o escrutínio sobre a Enel. A lentidão no restabelecimento dos serviços em diversas áreas da cidade reforçou as críticas à empresa e alimentou as investigações da CPI, destacando a precariedade da infraestrutura e a falta de investimentos proporcionais ao lucro obtido pela companhia.

O relatório inicial apontou que a ENEL São Paulo lidera o número de queixas de consumidores devido à falta de confiabilidade no serviço de fornecimento de energia, com destaque para os constantes apagões e atrasos no restabelecimento do serviço. Esse problema se intensificou após o grande apagão de novembro de 2023. As audiências da CPI trouxeram à tona depoimentos alarmantes: apenas 66% da infraestrutura da Enel atende aos padrões de desempenho estabelecidos pela Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL). Esse índice indica que 34% da área de concessão da Enel opera abaixo das normas mínimas de qualidade e continuidade exigidas, revelando um déficit significativo no atendimento e uma rede de distribuição fragilizada, incapaz de garantir confiabilidade para os consumidores.

O documento da CPI criticou duramente a manutenção da infraestrutura da Enel, apontando problemas como a insuficiência de equipes de campo e a má gestão da vegetação próxima às linhas de transmissão. A falta de manejo adequado de árvores ao redor dos cabos elétricos foi identificada como um fator crítico para quedas de energia, especialmente em eventos climáticos extremos, quando galhos e árvores entram em contato com as linhas, gerando curtos-circuitos e interrupções no fornecimento. A ausência de manutenção preventiva e a limitação de equipes especializada para agir prontamente nessas situações agravam os riscos e comprometem a capacidade da Enel de assegurar um fornecimento contínuo de energia.

A Enel também foi alvo de numerosas reclamações devido a cobranças irregulares, muitas vezes baseadas em leituras estimadas devido a supostos “impedimentos” para acessar os medidores. Esse método gerou cobranças inesperadas e, em alguns casos, valores muito acima do esperado. Diversos consumidores relataram ainda ter recebido contas zeradas com a justificativa de “análise de cobrança”, para depois serem surpreendidos com cobranças retroativas consideráveis, sem explicações adequadas ou prévia notificação.

A CPI, ao expor a limitação das práticas de cobrança e a deficiência no atendimento, apontou uma questão central: até que ponto o modelo de concessão privado, com prioridade nos interesses de acionistas internacionais, realmente atende às necessidades de infraestrutura e assistência dos cidadãos?

 

O dilema da privatização nos serviços essenciais

O apagão em São Paulo e a ineficiência da Enel ilustram as consequências de um processo de privatização acelerado e desenfreado nas últimas décadas, promovido pela promessa de que o setor privado traria mais eficiência e qualidade aos serviços públicos essenciais. Essa lógica, amplamente defendida por economistas e políticos neoliberais, não se concretizou. Em vez de um serviço mais acessível e eficiente, o que se observa são aumentos tarifários constantes, deterioração progressiva no atendimento e uma insatisfação popular crescente.

Um dos princípios centrais da retórica neoliberal é a crença de que a gestão privada é naturalmente mais eficiente que a pública. No entanto, a realidade dos serviços essenciais mostra que essa lógica falha em setores como energia, água, saneamento e transporte, onde o lucro imediato não pode guiar a prestação de serviços. Nesses setores, o objetivo principal deve ser o atendimento universal e acessível à população. Contudo, a privatização transfere a gestão desses bens comuns para empresas concentradas na maximização dos lucros, resultando frequentemente em precarização dos serviços e exclusão das parcelas mais vulneráveis da sociedade.

O movimento global de valorização do capital privado na infraestrutura, impulsionado pelo que a economista Daniela Gabor chama de Consenso de Wall Street, incentiva governos a promoverem grandes projetos de infraestrutura financiados por capital privado, transformando o setor público em facilitador de investimentos. Esse modelo subordina o Estado ao capital financeiro, limitando sua autonomia para implementar políticas públicas independentes e resultando na mercantilização do desenvolvimento social e econômico.

Na prática, o Consenso de Wall Street se materializa por meio de reformas que transformam o Estado em um ente “de-risking”, cuja função é diminuir os riscos dos investimentos privados através de parcerias público-privadas e reformas fiscais e regulatórias, além de subsídios e garantias. Para viabilizar esses projetos, utiliza-se uma estrutura híbrida de financiamento que combina dívidas, ações, garantias e seguros, alavancando capital público para atrair o privado. Em instituições como o BNDES, o Estado aloca recursos e assume riscos iniciais, tornando os projetos mais atrativos ao mercado financeiro. Essa abordagem expõe a infraestrutura pública à lógica de mercado, priorizando a rentabilidade sobre a acessibilidade e a qualidade dos serviços essenciais.

A Enel, em São Paulo, é um exemplo claro dessa lógica aplicada ao setor de energia. Desde a privatização, a empresa não apenas deixou de realizar investimentos essenciais para a estabilidade do serviço, mas também impôs aumentos tarifários significativos que pesam sobre o orçamento das famílias, sem oferecer a correspondente melhoria na qualidade dos serviços prestados. Os apagões frequentes, o aumento das tarifas e a crescente fragilidade do sistema revelam um modelo que, enquanto maximiza lucros para investidores, deixa de lado as necessidades essenciais da população.

O caso da Enel evidencia a contradição central da privatização dos serviços essenciais: ao transferir a responsabilidade pela gestão de bens públicos para empresas guiadas pelo lucro, o Estado reduz seu papel de provedor e regulador, enquanto o capital financeiro transforma os serviços básicos em mercadorias. É um modelo que, empenhado em alcançar rentabilidade, compromete a garantia de qualidade, acessibilidade e universalidade dos serviços públicos, deixando a população exposta a um sistema em que as demandas sociais são secundárias frente aos interesses dos investidores.

 

Comparando com outras experiências: Lições Internacionais

Um movimento global de re-nacionalização de empresas de energia tem ganhado força em países como Estados Unidos, Austrália, Espanha, França e Reino Unido, que começam a reavaliar os efeitos da privatização no setor energético. Um exemplo recente dessa mudança é a re-nacionalização da EDF, principal fornecedora de energia da França. No primeiro ano após a reestatização, a companhia registrou lucros superiores a dez bilhões de euros, contrastando fortemente com o prejuízo de dezessete milhões de euros reportado no ano anterior.

A decisão do governo francês de retomar o controle da EDF veio em resposta à disparada das tarifas após o início da guerra na Ucrânia. Sem sucesso nas negociações com os controladores privados para conter os aumentos, o governo optou por comprar as ações da companhia, visando recuperar o controle sobre um serviço essencial e estabilizar os preços para os consumidores.

No Reino Unido, os setores de energia e saneamento foram privatizados nos anos 1980, durante o governo de Margaret Thatcher, sob a promessa de serviços mais eficientes. No entanto, o que se seguiu foram décadas de desastres ambientais, aumentos tarifários constantes e investimentos insuficientes. Em 2019, um movimento crescente de reestatização começou a ganhar força, com o Partido Trabalhista defendendo a retomada do controle público de serviços essenciais, como transporte, saneamento e energia. A insatisfação popular com os resultados da privatização impulsionou um debate nacional sobre os impactos negativos dessa política. A recente reestatização da National Grid, operadora do sistema elétrico, foi justificada pela necessidade de reduzir tarifas e aumentar a segurança energética diante das mudanças climáticas.

Em outros países que ainda mantêm sistemas de energia sob controle estatal, como México, China e África do Sul, o discurso político também acompanha essa transição, com uma redução significativa da ênfase na privatização. Isso ocorre devido aos desafios e consequências observados nas experiências de privatização ao redor do mundo. A necessidade de segurança energética, amplificadas pelas mudanças climáticas e instabilidades geopolíticas, estão levando esses países a favorecer uma gestão estatal que priorize o acesso universal, a sustentabilidade e a estabilidade dos preços, em vez de depender de investidores privados que buscam lucros imediatos.

 

A necessidade de repensar o modelo

O apagão em São Paulo e o crescente movimento global de reestatização de serviços essenciais evidenciam as falhas de um modelo de privatização que prioriza o lucro sobre o bem-estar público. As experiências de países como França e Reino Unido oferecem lições valiosas para o Brasil. É hora que governos e sociedade civil repensem o papel do setor público e considerem alternativas que assegurem o acesso universal e de qualidade a esses serviços, colocando as necessidades da população acima dos interesses financeiros. Caminhos como a reestatização e a criação de modelos de gestão pública participativa podem proporcionar maior transparência, controle social e eficiência, tratando serviços essenciais como direitos fundamentais, e não como mercadorias. Assim, o Brasil teria uma chance de corrigir o curso atual, assegurando que a infraestrutura pública atenda ao interesse coletivo e contribua para uma sociedade mais justa e inclusiva.

 

Texto original publicado em: https://diploma­tique.org.br/anatomia-de-um-apagao-a-crise-da­-privatizacao-dos-servicos-publicos/

 

 

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