Adoção de cotas raciais não é favor, é reparação histórica!

TRIBUNA LIVRE | Por Cristiano dos Passos, com a colaboração de Vânia Mattozo, trabalhadores da Celesc e Dirigentes do Sinergia

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Nas duas últimas assembleias estaduais, a garantia de cotas raciais para pessoas pretas, pardas ou indígenas nos concursos da Celesc gerou controvérsia. Em 2023, a questão foi levantada pela base do Sinergia e, a princípio, pareceu que não suscitaria debates. Para nossa surpresa, a votação foi apertada e, após ser debatida e submetida à decisão da categoria, a cláusula foi retirada de pauta. Mas chamou a atenção o fato de, no debate, não haver ninguém para defender abertamente a exclusão da cláusula. Neste ano, o tema voltou para discussão e, finalmente, foi aprovado por ampla maioria, não sem antes passar por divergência com alguns colegas, o que nos causa certa perplexidade: embora houvesse quem se opusesse à cláusula, na hora da votação, nenhum dos opositores manifestou o seu voto contrário…

Como defensor da cláusula, quero esclarecer alguns pontos, considerando que essa divergência possa ser fruto da desinformação generalizada que ronda o tema, embora não se possa ignorar que há algo muito estranho nessa oposição a causas (hoje) reconhecidamente legítimas, como a criação de cotas raciais. Aliás, a minha motivação principal para defesa da cláusula foi que, se algo nos impedia de tratar abertamente a negação dessa cláusula, possivelmente há algo implícito entre nós que não parece nada bom. 

Vejamos: é visível que há poucas pessoas  pretas, pardas e indígenas concursadas no quadro funcional da Celesc, embora mais da metade da população brasileira (55% pelo censo de 2022) esteja incluída nesse recorte racial. O último Balanço Social da empresa comprova isso: entre 3.857 empregados, apenas 93 são pessoas pretas, ou seja, apenas 2,4%. Em cargos de chefia, o percentual é ainda menor: 1,74%. Em SC, ainda que o percentual de pessoas indígenas seja de apenas 0,25% e de negras seja de 4,06%, o número de pessoas pardas chega a 19,22%. Juntas, elas representam 25% da população catarinense.

Outros dados podem nos ajudar a pensar com mais propriedade: um estudo do IBGE (2022) indicou que o desemprego é duas vezes maior entre os negros. Além disso, o salário de pessoas brancas é maior do que o das pretas, assim como o rendimento domiciliar per capita médio, quase 30% maior. Na gestão pública, uma auditoria do TCE/SC, realizada entre 2022-2023, confirmou a baixa representatividade de negros no quadro de servidores estaduais. Mais: uma auditoria atestou a deficiência na coleta de dados sobre cor e raça e a ausência de ações afirmativas para o ingresso dessas pessoas em instituições públicas.

A mesma desigualdade está retratada no baixo acesso à educação e saúde, serviços públicos e cultura, entre outros, tendo a população negra índices bem menores do que a branca. Nos indicadores de violência e segurança pública, contudo, pessoas pretas e pardas aparecem com números muito superiores, especialmente no que diz respeito às vítimas de violência policial, às mortes provocadas por ação da polícia ou ao encarceramento por motivos diversos. Em resumo, pode-se afirmar que a desigualdade social é inegável em nosso Estado e que esse contexto interfere de forma extremamente nociva no dia a dia dos que estão em desvantagem social e, indiretamente, no conjunto da sociedade porque, como defensores da luta dos trabalhadores não podemos nos eximir da responsabilidade pela construção de uma sociedade mais justa e igualitária. 

Sabemos que trabalhadores bem remunerados, respeitados em suas funções, podem viver sua vida com dignidade e certamente são pessoas mais dispostas a lutar pelo bem comum. Falando em ‘bem comum’ não me refiro exclusivamente aos nossos interesses específicos de categoria ou setor de trabalho, mas aos (bons) interesses de toda a sociedade, pois entendo que não é possível viver bem de verdade se aqueles que vivem ao nosso redor não estiverem igualmente bem. Isso, na prática, se trata de justiça social.

Então, se a presença negra ainda é tão reduzida em nosso cotidiano profissional, ainda que represente ¼ da nossa população total, sso indica que essas pessoas encontram muita dificuldade para chegar aonde nós, brancos, chegamos. Vale lembrar que a história do Brasil foi construída sobre 400 anos de escravidão de pretos, pardos e indígenas. A “abolição” do regime escravocrata ocorreu a serviço do então novo capitalismo, abandonando essas pessoas à própria sorte, diferentemente do que houve com os imigrantes europeus que vieram para terras catarinenses. Eles foram recebidos com a garantia de uma terra para trabalhar e, no caso daqueles que ainda atuam na área rural, até hoje são subsidiados por políticas de governo, o que permitiu criar seus descendentes com mais dignidade do que aqueles explorados por senhores de terras.

As cotas raciais representam uma tentativa de reparar, ao menos um pouco, essa injustiça secular que nos afastou do convívio – brancos e pretos – em nosso ambiente de trabalho. Ao final, direito é tudo aquilo que conquistamos para todas as pessoas, respeitando a diversidade existente e permitindo que todas tenham oportunidade de vida digna. Se excluirmos essa premissa do contexto de nossas lutas diárias, todo direito se torna apenas um privilégio, especialmente aos olhos de quem é excluído do nosso suposto sistema democrático – o que fere diretamente os princípios de cidadania e justiça social, tornando insustentável a vida em coletividade.

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