Direito dos trabalhadores ou lutas identitárias?

TRIBUNA LIVRE | Por Elenira Vilela, professora de matemática no Instituto Federal de Santa Catarina e Coordenadora Geral do SINASEFE

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Todo dia alguém diz que é mais importante lutar pelos direitos trabalhistas, pela política do salário-mínimo, pelo aumento do emprego e que esse negócio de representatividade, lin­guagem neutra é só frescura, babaquice… Va­mos pensar nisso?

O capitalismo é um sistema que enriquece alguns explorando os que só podem trabalhar para outro pra sobreviver, isso significa que só haverá bilionários se houver número enorme de pobres. Hoje, o capitalismo está em crise profunda, como disse Lula, há três mil pes­soas que têm um patrimônio de 15 trilhões de dólares, o que é mais que o PIB de muitos países, inclusive desenvolvidos, juntos. Essa desigualdade emperra a roda da exploração.

Mas e então? O que o Brasil ter mais mulhe­res que homens, mas menos de um sexto da Câmara serem mulheres tem a ver com isso? O que o Brasil ter mais negros que brancos e que essas pessoas não tiveram acesso nem mesmo ao direito ao reconhecimento como humano e, depois, a nenhum dos direitos bá­sicos tem a ver com isso? O que o Brasil ser o país que mais mata pessoas trans do mundo tem a ver com isso? O que o governo de SC censurar um filme sobre sexualidade de Pes­soas Com Deficiência (PCDs) tem a ver com isso? O que professoras que cumprindo sua função e trabalhando educação sexual nas salas de aula e, por isso, sendo perseguidas e demitidas tem a ver com isso? O que jovens sem perspectivas e idosos sem dignidade e cuidados tem a ver com isso?

A realidade é: não existe luta de classes no Brasil (e na maior parte do mundo) sem enfrentar machismo, racismo, capacitismo, especismo e tantos ismos do mundo! A ra­zão? Não existe luta de classes sem organizar as dores e demandas da classe trabalhadora concreta, a que existe de verdade, a que de fato está sendo explorada, passando fome, massacrada pela polícia, sem remédios… e não existe luta de classes sem libertar a mais importante fábrica do capital, a fábrica que produz a única mercadoria que gera valor: os úteros! Especialmente os úteros das mulheres negras de periferia.

Recentemente, a Oxfam anunciou um dado que não deveria parar de ser repetido por toda mulher feminista militante nesse debate: os superricos roubam 10,8 trilhões de dólares por ano na forma de trabalho de produção e reprodução da força de trabalho, aquele traba­lho das mulheres (quase sempre negras) que uns chamam de cuidado e outros de amor! Como seria pra fabricar um Jeff Bezos, um Elon Musk ou um Jorge Lemann sem poder praticar esse roubo? E não é possível praticar esse roubo sem utilizar do machismo, racismo e LGBTfobia como ferramenta de naturalizar a exploração de mulheres.

Não é possível garantir que haja pessoas em número além do que eles contratam (pra fazer quem tem trabalho aceitar qualquer sa­lário e, por exemplo, a escala 6×1 e quem não tem que aceitar ser explorado em qualquer condição) se as mulheres e demais pessoas, especialmente as LGBTQIAPN+, exercerem o direito livre à sua sexualidade e o direito ao aborto.

Coloque no google “queda nas taxas de fecundidade” e veja o quão as manchetes são desesperadas. Exercício livre de sexualidade hoje significa ter menos filhos em boa parte do mundo e isso atinge o capital. Vamos pensar: por que as taxas de fecundidade caírem é um problema? A pergunta correta é: pra quem a queda da taxa de fecundidade é um problema?

Não é para mulheres e pessoas com útero, afinal, todas as vezes que elas têm minima­mente escolha, as taxas caem. Certamente não é para o planeta, que está precisando se recuperar de uma superpopulação de seres humanos. Mas eles dizem que é um problema pra economia. Só seria um problema para a economia se fosse impossível, sem aumentar o número de pessoas trabalhando, seguir pro­duzindo o que é necessário para as pessoas viverem com dignidade. Só que, ao contrário, com a tecnologia que temos e crescimento em ritmo menor, basta reduzir jornadas de tra­balho, contratar mais pessoas e isso deixaria de ser um problema.

É problema somente para os supercapita­listas, os bilionários! Porque somente contro­lando os corpos é que eles conseguem explo­rar o suficiente para seguirem aumentando seu patrimônio no ritmo que querem. Não é acaso feminismo, sexualidade e aborto serem temas centrais da extrema direita fascista. As ideologias extremistas autoritárias (colo­nialismo, fascismo, nazismo) apoiadas em religiosidades fundamentalistas (mercadores da fé no cristianismo neopentecostal no Bra­sil, hinduísmo islamofóbico na Índia, sionismo em Israel, islamismo que segue a lei da sharia no Afeganistão) é que dão suporte necessário para a criação de sistemas autoritários violen­tos que têm na base estrutural a liberdade da mercadoria e da exploração e a opressão e do­minação dos corpos. Sem essas ideologias o capitalismo iria ruir.

A outra alternativa para a manutenção do capitalismo é a guerra. E a guerra também de­pende de machismo, do lado que constrói uma masculinidade tóxica que coloca ao homem a referência de autorreconhecimento por meio da violência e, somente assim, o convence a colocar a própria vida e a de tantos outros em risco em nome de um heroísmo lutando em uma guerra que nunca é sua.

Como diria o Paulo Galo, não é possível li­bertar a classe trabalhadora sem libertar a me­nor fábrica que é o útero de cada mulher negra.

Portanto, não existe lutar contra o capitalis­mo sem lutar contra o machismo, o racismo, o capacitismo, o especismo, a lgbtfobia, a cishe­teronormatividade e todas as formas de opres­são que criam as condições concretas para to­das as formas de exploração do trabalho.

*Texto completo em www.linhaviva.org.br

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